23 de outubro de 2009

Fauna de botequim


O corretor zoológico

Seu Jair era um sujeito solitário, já contava mais de oitenta com certeza. Talvez por viver sozinho, (não se tinha notícia de parentes, filhos, netos) adotara o bar e seus assíduos freqüentadores como sua família. Apesar da idade que certamente lhe proveu de incontáveis histórias, não falava muito de si. Gostava de carteado e apontava as apostas do jogo do bicho do último sorteio diário, horário em que a jovem Maria não podia fazê-lo, pois morava longe e tinha que cuidar da filha. Jair morava numa quitinete por ali mesmo, para ele era bom negócio, ficava assuntando, conversava com um e outro, arranjava uma vítima para raspar os bolsos no carteado, e de quebra, ganhava algum pelo serviço de apontador.

Era um excelente garfo, enorme, mas forte e ágil como um garoto, se considerada sua idade avançada. Comentava-se que sua taxa de colesterol beirava os 600, e como não poderia deixar de ser, virou alvo de chacotas do tipo: “Seu Jair! com esse colesterol, se levar uma facada vai levar um dia pra sair uma gota de sangue!”. Era fanático por carne de porco e costela de gado, tudo muito gordo e acompanhado sempre de uma dose de conhaque, mas eu mesmo nunca o vi embriagado. Devia pesar uns cento e cinqüenta quilos, e tinha um bordão: “Quero morrer depois do almoço, pra dar mais trabalho a quem carregar meu caixão!” Todos os garfos do botequim tinham os dentes entortados, como se o próprio Uri Geller realizasse suas apresentações ali. Mas aquilo era obra de Jair, que abria os dentes dos garfos com uma faca, para que pudessem apanhar mais comida. Nos pés, sempre um par de sandálias azuis, que pareciam sumir sob corpo tão imenso. Recordo que em um determinado ano, caí na balela de seus “três aniversários”. É que nesse ano, (se bem me lembro o ano anterior ao de sua morte) ele inventou que era seu aniversário em três datas diferentes. Como era benquisto por todos, ganhou sandálias novas, bebidas e lembranças em cada um desses dias, e fez com que ninguém reparasse em sua travessura, só mesmo no terceiro alguém se deu conta, mas deixou que ele acreditasse ter enganado a todos. Em meu dia de pato, dividi com outro conviva da fauna do bar, um almoço na cantina que ficava na esquina oposta. Nesse dia Jair chorou. Ainda não sei bem o porquê, talvez por arrependimento pela traquinagem, mas emocionou-se com o agrado. Somados esses aniversários, certamente chegaria aos noventa.

Todos estranharam o dia em que Jair não apareceu na abertura do botequim, nem no almoço e nem para apontar o jogo do bicho, ao cair da tarde. Quando chegaram à sua quitinete, ele já havia pegado o bonde. Ainda me pergunto se ele teve sua última e lauta refeição antes de morrer, como sempre desejara.

Rodrigo

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