2 de abril de 2010

Fugazi











"Se a História for simpática com o Fugazi, os discos da banda não serão obscurecidos pela reputação e métodos de trabalho deles. Ao invés de serem conhecidos por seu ativismo comunitário, shows a cinco dólares, CDs a dez dólares, resistência às ordens do mainstream e risível folclore fictício cercando seus estilos de vida, eles serão identificados por terem fixado um grande nível para excelência artística que é frequentemente buscado mas raro de ser conquistado. Durante sua existência, o quarteto criou algumas das mais inteligentes, revigorantes e indubitavelmente musicais canções de pós-hardcore. Lado a lado com sua ética underground - que se baseava mais em pragmatismo e modéstia do que qualquer outra coisa - eles ganharam um culto global numeroso e extremamente leal. Para muitos, o Fugazi significava tanto quanto Bob Dylan tinha significado para seus pais. (...) Mais que qualquer coisa, o Fugazi inspirou; eles mostraram que a arte podia prevalecer sobre o comércio." ALL MUSIC GUIDE

É no modo-Fugazi-de-ver-as-coisas que se torna mais virulenta aquelaideologia que poderíamos chamar de Ortodoxia Indie: a certeza de que as grandes gravadoras são como Igrejas de Satã instaladas sobre o planeta Terra para conspurcar e empodrecer nossos ouvidos com lixo, a crença de que o mainstream é palco privilegiado para o desfile de tudo o que há de risível e deplorável no ramo da música, a convicção de que estar com um clipe em alta rotação na MTV ou subir ao topo da parada da Billboard é sinal de demonismo, canalhice e falta de caráter... Tudo aquilo que procure vincular a música à engrenagem capitalista de multiplicação de capital, tudo o que tem a ver com fabricação de estrelas a serem amadas de joelhos nos altares pop, tudo o que é feito com vistas ao sucesso e aos bolsos cheios de verdinhas é absolutamente repudiado pelo Fugazi. A salvação, não cansam de dizer eles, é a Independência, o do-it-yourself, o montar sua gravadora e produzir a si mesmo, a publicidade boca-a-boca, o redemoinho de indie-zines. Estejam certos: esses caras NUNCA irão assinar um contrato com a Warner Brothers, NUNCA estarão sendo anunciados no topo do Disk MTV, NUNCA venderão mais de um milhão de cópias de qualquer de seus álbuns, NUNCA vão permitir que seus CDs sejam vendidos por mais de 10 dólares, nem que a entrada para seus shows custe mais do que o proletariado pode pagar, e nem por isso deixarão de ser considerados como uma das mais influentes, incendiárias e inspiradoras bandas dos anos 90.

O modo de trabalho do Fugazi praticamente resume o Evangelho Indie: fuja do mainstream e das majors, funde tua própria gravadora (nesse caso, a já lendária Dischord), venda seus discos a 10 paus e seus ingressos a 5, dê entrevistas quilométricas para zinões toscos de fundo de quintal enquanto levanta o dedo médio pra Rolling Stone e pra NME, e nunca se esqueça de denunciar toda a podridão que se esconde por trás do Esquema do Pop capitalista - que é ganancioso, fútil, burro, farsário e alienante (pra dizer o mínimo).

A Dischord, nascida para que o Teen Idles, antiga banda de Ian MacKaye, pudesse auto-lançar seu material, hoje já tem mais de 20 anos de idade e está devidamente consolidada como um pilar fundamental para o rock independente americano nas últimas décadas. "É difícil de imaginar onde milhares de bandas estariam hoje - Rage Against the Machine, Nirvana, Beastie Boys, Sleater-Kinney - se a Dischord não tivesse emergido no horizonte cultural nos anos 80", diz matéria na SALON. "Diferente de muitas gravadoras independentes, a Dischord não se comporta como um gravadora major em miniatura. Nenhuma das dezenas de bandas que lançaram discos com MacKaye o fez sob qualquer obrigação contractual com o selo. CDs, vinis e outros lançamentos recebem um preço congruente com os custos de produção e distribuição".

Ou seja, a Dischord é quase uma empresa sem fins lucrativos atuando muito mais por amor ao punk rock do que por ganância financeira. O próprio MacKaye esclarece: "um aspecto dessa gravadora que resultou em nossa longevidade é que eu odeio a indústria de discos. Eu nunca quis possuir uma gravadora em si. Eu queria lançar discos e eu odiava tanto a indústria que não conseguia suportar a idéia de qualquer outra pessoa lançando os discos... pois eu nunca pude confiar neles." Uma boa amostra do que fez a gravadora nessas duas décadas de vida pode ser encontrado no BOX 20 Years Of Dischord, recentemente lançado nos EUA, que resume em 3 CDs o que de melhor foi gravado nos estúdios do selo.

Além dessa radical tomada de posição anti-capitalista, o Fugazi também é famoso por seguir e "propagandear" o estilo de vida Straight-edge, que não deve ser familiar àqueles que não estão inteirados com os subterrâneos da cena punk, valendo a pena então dar uma clareada no seu significado. "Straight Edge" é, antes de mais nada, uma música do Minor Threat, a banda de hardcore que Ian MacKaye chefiava na segunda metade dos anos 80, música esta que serviu para batizar um "movimento comportamental" dentro da cena punk. Os mais fanáticos seguidores vêem nele muito mais do que uma modinha ou do que o nome de uma tribo urbana: para eles, Straight Edge é uma seríssima filosofia de vida seguida com uma ortodoxia digna de um religioso fervoroso. Para os detratores, os punks straight-edge representam a parcela mais "puritana" e "moralista" dentre os punks, mas não há poucos que ressaltam o fato de que o straight-edge foi importante para provar que ser um punk não era sinônimo de ser imoral, violento, vândalo e/ou nazistóide...

A filosofia straight-edge solicita de seus seguidores que não consumam nenhuma droga (nem mesmo o álcool), que não se entreguem a relações sexuais casuais e promíscuas, que pensem com uma "mentalidade comunitária", que não se deixem nunca arrebatar pela violência, dentre outros preceitos. Há até mesmo aqueles que se pronunciam convictos vegetarianos! Apesar de haver uma série de bandas underground que se dizem straight-edge, o Fugazi e o Minor Threat permanecerão sempre como as duas bandas-símbolo do movimento e Ian MacKaye, queira ou não, como o messias dessa religião laica...

Não é difícil de simpatizar com a banda só por isso que ficou dito, e não foram poucos os que manifestaram sua empatia com a luta fugaziana (Kurt Cobain, por exemplo, declarou que muito admirava a "integridade" do Fugazi). Mas por enquanto ainda não saímos do domínio da política, do comportamento, da atitude frente ao capitalismo e à indústria cultural, e não chegamos ao que também interessa checar: a música. "Se a História for simpática com o Fugazi, os discos da banda não serão obscurecidos pela reputação e métodos de trabalho deles", disse o simpático sujeito que escreveu a bio da banda para a AMG. E é fato que a banda chega a ser mais célebre pela ideologia indie ortodoxa e pelo modo-de-viver straight-edge do que pela própria música que fazem.

As mitologias que circulam por aí sobre os membros da banda beiram a lenda folclórica e acabam desviando a atenção pra longe do som. "Uma vez que a banda não dava entrevistas para publicações grandes, alguns jornalistas foram deixados livres para improvisar e optaram por tomar licença criativa. As fofocas entre a base de fãs era igualmente imaginativa. De fato, alguns dos caras que iam aos shows poderiam se surpreender de ver a banda chegar aos locais em vans, e não num comboio de camelos. Aqueles que falavam com membros da banda ficavam surpreendidos de ouvir que eles viviam em casas - e não em monastérios - com calefação funcionando... e que suas dietas não eram estritamente à base de arroz", diz o bem-humorado cara da AMG.

Enfim, é preciso ir à música, e é isso o mais importante. É chegado o tempo de começar a ouvir o som do Fugazi ao invés de só reconhecê-los pela política frente à indústria cultural e a moralidade rígida que seguem. Que os holofotes finalmente iluminem a música do Fugazi e não só a desgraçada da Atitude!

Pois bem: a banda começou sua caminhada em 1987, na capital americana Washington, formada das ruínas de algumas bandas importantes na consolidação do hardcore e do emo americano. Do Minor Threat, banda de rápida carreira que é hoje considerada uma das mais importantes da história do hardcore (lado a lado com os Dead Kennedys, o Husker Du, o Discharge...), saiu o vocalista Ian McKaye. Do Rites Of Spring, o guitarrista e vocalista Guy Picciotto. Foram complementados pelo baixista Joe Lally e pelo baterista Brendan Canty. Através dos anos 90 e 00, lançaram (sempre via Dischord) os seguintes álbuns: 13 Songs (que reúne os dois primeiros EPs lançados pela banda, o auto-entitulado de 1988 e o Margin Walker de 1989), Repeater (1990), Steady Diet Of Nothing (1991), In On The Kill Taker (1993), Red Medicine (1995), Instrument (trilha-sonora, 1998), End Hits (1999) e The Argument (2001).

Descrever a música com palavras sempre é tarefa complicada, mas tentemos. O Fugazi sempre me pareceu a irmã menor do Gang Of Four na família que tem por papai o The Clash e por mamãe o pós-punk ao estilo PiL (se bem que com uma violência sônica mais brutal). Como o Gang e o Clash, o Fugazi também é uma banda profundamente política, engajada, militante, mas a analogia não pára por aí. A música do Fugazi compartilha com o Gang of 4 e com o pós-punk em geral alguns elementos clássicos: a preferência dada ao fator rítmico sobre o melódico, a gravidade dos instrumentos solo (que faz com que as guitarras tenham aquele som quase de baixo e que quase nunca saiam fazendo solinhos agudos), a ausência quase completa de lá-lá-lás cantaroláveis. O Fugazi é muito mais um monstro rítmico barulhento do que uma fábrica de doces melódicos, caindo vez ou outra num experimentalismo que beira a atonalidade e o sonic-youthianismo. Bandas como o ...Trail of Dead, o Mission of Burma, o Jesus Lizard, o Jawbox, o Plastic Constellations e o Giddy Motors seguem o mesmo evangelho e são outros parentes próximos na família Fugazi.

Em resumo : tanto pela música empolgante e contagiosa quanto pela atitude muito elogiável, o Fugazi é tipo um MODELO. A heróica banda que segura a bandeira do underground com a mais firme das mãos e que conduz o mastro da Dischord por mares turbulentos sem naufragar. Os corajosos punks que ousaram questionar todos os estereótipos e sugerir que ser punk poderia ser outra coisa que não somente destruição, anarquia e niilismo (e que podia se basear em espírito comunitário, ativismo político, construção de valores alternativos...). Enfim: a banda-emblema dos anos 90 a provar que "a arte podia prevalecer sobre o comércio". Uns HERÓIS, esses caras.

Eduardo Carli de Moraes
maio de 2005

Texto:

http://dirtylittlemummie.vilabol.uol.com.br/musica/fugazi.htm

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