3 de fevereiro de 2010

Uma boa dosagem de lirismo


Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo
(além da sífilis, claro)
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos, e sinceramente chora

(...) Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito,
Desencontrado, eu mesmo me contesto

Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão do incesto

Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadura à proa
Mas o meu peito se desabotoa

E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega a executa,
Pois que senão o coração perdoa.

[excerto de Fado Tropical, Chico Buarque e Ruy Guerra, 1972-73]

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